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Usina de Santa Quitéria deve elevar radiação acima do limite e afetar 11 cidades no CE, diz estudo

Um projeto para extração de urânio em Santa Quitéria, no Sertão dos Inhamuns, interior do Ceará, pode ferir direitos humanos com 28 irregularidades identificadas e impactar diretamente, pelo menos, 11 municípios com material radioativo, além de elevar a radiação do local. O alerta foi feito em relatório do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), que também aponta omissões no pedido de autorização para a retirada do minério.

O CNDH foi instituído em 2014 pelo Governo Federal para promover e defender os direitos humanos no País por meio de ações preventivas e reparadoras, em conformidade com a Constituição Federal. São 11 representantes da sociedade civil e 11 do Poder Público na composição do Conselho.

No caso da mineração no Ceará, especialistas e moradores temem prejuízos para a saúde, inclusive com casos de câncer associados à radioatividade, falta de água para consumo humano e para criação de animais. Populações indígenas e quilombolas, como acrescenta o documento, não foram consideradas no pedido de licença.

Por isso, os relatores pedem a suspensão liminar do pedido de licença prévia da extração de minério feito ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama). O Consórcio Santa Quitéria, formado pela estatal Indústrias Nucleares do Brasil e a empresa Galvani Fertilizantes, é o responsável pelo projeto.
Confira as cidades afetadas:

Santa Quitéria
Itatira
Monsenhor Tabosa
Boa Viagem
Tamboril
Catunda
Madalena
Canindé
Sobral
Caucaia
São Gonçalo do Amarante

Os níveis de radiação na região estão acima do que é natural, conforme o grupo que produziu o relatório técnico. Em Morrinhos, por exemplo, uma medição numa escola indicou uma taxa de dose externa de 0,1 µSv/hora, o que equivale a uma dose efetiva anual 0,87 mSv (Milisievert), bastante próxima do limite máximo permitido, como detalha o documento.
O que é e quais os riscos do urânio  

O urânio é encontrado em rochas e pode gerar calor quando a ligação entre os seus prótons e nêutrons é rompida – é a fissão nuclear, que acontece dentro dos reatores das usinas. É com esse calor que se produz energia elétrica, como explica a organização Indústrias Nucleares do Brasil.

O Ministério da Saúde explica que fontes radioativas, como o urânio, podem provocar danos ao ser humano, desde um simples eritema, como uma vermelhidão na pele, até a síndrome aguda da radiação que pode ser letal. As radiações não são perceptíveis aos sentidos humanos.

A ideia do grupo no Ceará é fabricar fertilizantes para produção de alimentos e fosfato bicálcico para ração animal, com investimento superior a R$ 2 bilhões, na Mina de Itatiaia, em Santa Quitéria. Essa é a maior fonte de urânio físsil do Brasil, conforme a Agência Brasileira de Inteligência.

Galeria 3

Mas o relatório aponta que o projeto, como foi apresentado ao Ibama, oferece risco para os trabalhadores, população da vizinhança da Mina de Itatiaia e da rota de transporte do material radioativo. Também há possibilidade de contaminação da água, solo e ar.

“Nosso relatório é extremamente técnico e científico, com uma pesquisa relevante, grande parte dessas informações nem pessoas do Governo e do Ibama têm”, explica a conselheira do CNDH, Virginia Berriel, que veio ao Ceará para a produção do documento.

Eles pedem o licenciamento desde 2004 para o Ibama e não foi concedido, o Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública e depois eles pediram (a licença) novamente. Em 2019, não conseguiram e em 2020 novamente abriram um pedido de licenciamento, mas certamente não vão conseguir

Virginia Berriel

Conselheira do CNDH

As audiências públicas e oitivas contaram com a participação de pelo menos 25 pessoas. No assentamento Morrinhos, em Santa Quitéria, participaram representantes de 28 comunidades tradicionais, como indígenas, quilombolas, povos de terreiro e pescadores, por exemplo.

Também foram reunidos membros de movimentos sociais, sindicais, professores, pesquisadores e órgãos do sistema de Justiça. Em geral, a população relata medo e incerteza com a retomada da possibilidade de mineração de urânio e fosfato na região.

“Eles temem ter problemas por radiação, lá venta muito e as comunidades ficam logo atrás. Se ganharem o licenciamento pretendem fazer a usina de beneficiamento do urânio logo abaixo dessas comunidades. Então, imagina a preocupação com a saúde dessas pessoas”, acrescenta Virginia.
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Algumas inconsistências no pedido de autorização também foram apontadas. Por exemplo, na Ficha de Caracterização de Atividade está descrita a produção de 750 mil toneladas de derivados de fosfatados, que são fertilizantes e produtos para alimentação animal, e 1,6 mil toneladas de urânio, com vida útil de 26 anos.

Porém, ao protocolar o Estudo de Impacto Ambiental, o empreendedor afirma que a produção anual estimada será de 1.050 milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados e 220 mil toneladas de fosfato bicálcico para alimentação animal e 2.300 toneladas de concentrado de urânio.
Confira 10 irregularidades apontadas no documento:

Omissão dos riscos associados à radiação
Possível emissão de gases e de radiação nas galerias já perfuradas
Ruído em nível superior em 10 dos 12 pontos monitorados
Risco de comprometimento do fornecimento de água para consumo humano e para criação de animais
Ausência do componente indígena e quilombola
Presença de espécies potencialmente afetadas pela radiação
Violação de pelo menos 8 padrões de emissões de poluentes
Omissão quanto à possível interação entre a emissão de poluentes e a emissão de vapor d'água
Dados conflitantes quanto à emissão de resíduos sólidos
Impacto do desembarque portuário e transporte do coque e do enxofre e do embarque concentrado de urânio não foram avaliados

Não existe nenhuma retirada de material radioativo no momento, mas isso já aconteceu na década de 1980 e 1990, quando foram abertas galerias nas rochas e extraído material, que não se sabe como está armazenado, conforme Virginia Berriel.

“Só por isso, o índice de radiação – e foi medido na comunidade de Morrinhos – estava praticamente 4 vezes maior do que o permitido. Então, nós entendemos que tem radiação em toda aquela região”, completa.

O Ibama foi questionado na última sexta-feira (18) sobre a avaliação do relatório e que medidas devem ser tomadas a partir das recomendações que priorizam a população e o meio ambiente da região. Até a publicação desta reportagem, porém, não houve resposta. 

A assessoria de comunicação do Instituto informou que a demanda do Diário do Nordeste foi enviada para a área técnica, mas não há previsão para o repasse das informações.

Já o Consórcio Santa Quitéria negou qualquer violação aos direitos humanos e informou que não foi notificado oficialmente sobre a publicação do relatório do CNDH, mas que enviou uma carta para os membros do Conselho com detalhes sobre os principais pontos do projeto.

O Consórcio cita a realização de audiências públicas, apresentação ao MPF e visitas às localidades vizinhas ao projeto. Conforme nota enviada, as equipes técnicas tiveram fala negada na 64ª Reunião Ordinária do CNDH, na qual o relatório foi votado.

“Foi possível notar durante a exposição do seu resumo na reunião, diversos equívocos, que já foram amplamente refutados com fatos e dados técnicos apresentados à sociedade civil e protocolados juntos aos órgãos reguladores”, destacou.

O Consórcio assegura que o empreendimento será seguro e não representará danos à saúde dos trabalhadores e das pessoas que moram nas localidades vizinhas. Todos os possíveis impactos ambientais foram estudados, e medidas para reduzi-los, controlá-los e mitigá-los serão implementadas 

A iniciativa destaca ainda benefícios para a população com o aumento do Produto Interno Bruto (PIB). “Esse crescimento econômico representará melhor qualidade de vida para as pessoas, com mais renda, empregos e arrecadação de impostos pelo poder público”.
Receio das comunidades tradicionais

As comunidades tradicionais temem serem afetadas pela contaminação direta com o material radioativo ou pela dispersão no transporte do urânio e do fosfato, que pode passar pelos territórios desses povos.

Os indígenas ouvidos pelos conselheiros, por exemplo, consideram que tiveram os territórios desrespeitados pelo projeto. As comunidades da Serra das Matas, do Movimento Potigatapuya, ressaltaram o processo de demarcação de terras como uma prova da presença indígena na região.

As comunidades quilombolas também têm os territórios cortados por rodovias e compartilham os receios dos indígenas. Os representantes dos pescadores estimam que 270 trabalhadores da Colônia Z75, de Santa Quitéria, atuam no Açude Edson Queiroz.

Oitiva

“Há também as violações, como os ruídos, as rotas tecnológicas, os poluentes que vão ser fornecidos na água, nas plantações e criações de animais”, frisa Virgínia. Ela, inclusive, considera a falta de consulta popular no projeto.

“Eles deveriam ter ouvido atentamente à população indígena e quilombola, as populações tradicionais, e isso é uma violação à Convenção 169 da OIT”, detalha. A população da localidade também teme a perda do sustento que vem da produção de grãos, frutas, verduras e de carne. 

“Ressaltam que, mesmo vivendo no semiárido cearense, conseguem produzir uma diversidade de alimentos com a pouca água que têm disponível, principalmente no período de estiagem”, destaca o documento.

Audiência pública

Isso foi observado pelo professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), Jeovah Meireles, durante pesquisa na região para entender qual o impacto da mineração entre municípios cearenses.

“Do ponto de vista da contaminação aérea, podem avançar uma gama de contaminação em 200 km, o que alcança o Piauí. A movimentação de caminhões gera também algo que altera a biodiversidade no solo e na água”, completa.

A exploração de minério na Bahia, inclusive, funciona como um exemplo do perigo que vem com a exploração do minério, como explica Jeovah. “Nas feiras locais tem um problema seríssimo na comercialização dos produtos da região, estudos mostraram níveis elevados de contaminação por materiais radioativos”, completa.

Na análise do especialista, não deve haver extração de urânio e fosfato na região, mas sim um investimento público para a produção de alimentos. “A proposta é exatamente que o urânio não seja minerado e que o Estado invista recursos para aprofundar técnicas de multiatividades relacionadas com a biodiversidade, manejo de água e relações culturais”, conclui.
Casos de câncer

Os moradores do entorno de Santa Quitéria relatam mortes causadas por câncer e apontam o contato com a radiação como a causa. Presente nas audiências públicas, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) ressaltou que os casos correspondem à média do Estado.

A taxa de óbitos por neoplasia por mil habitantes em 2019 era de 0,87 caso por cada mil habitantes em Santa Quitéria, e de 1,06 caso por mil habitantes no Estado. Esses dados refletem o índice de mortalidade no município como um todo, abrangendo todos os 43.711 habitantes, como detalha o relatório.

CNDH

Mas, ao olhar para a realidade dos assentamentos de Morrinhos, Queimadas e Saco do Belém, conforme as lideranças comunitárias, a situação é muito diferente.

“Tem várias outras constatações que afetam direta e indiretamente à população, a taxa de mortalidade por câncer nesses assentamentos, é no mínimo 4 e 5 vezes maior (do que o normal)”, analisa Virgínia. 

“Uma possível explicação para essa taxa de mortalidade elevada pode ser a radioatividade natural mais elevada na região da jazida, em face do afloramento do minério contendo urânio”, aponta o documento.

Outra possibilidade apontada está no fato de trabalhadores dos anos 1970 e 1980, para a construção das galerias e testes na fonte de urânio, terem tido contato com o material radioativo. Os relatores indicam a necessidade de um estudo epidemiológico para analisar o cenário nas proximidades da jazida.
Recomendações

O relatório do Conselho Nacional dos Direitos Humanos elaborou uma lista de recomendações ao Ibama, Governo do Ceará, Defensoria Pública da União, Ministério Público Federal, Comissão Nacional de Energia Nuclear e ao Ministério Público do Trabalho.

Entre as orientações para o Ibama, o documento pede “que indefira liminarmente o pedido de licença prévia do Projeto Santa Quitéria e avalie a necessidade de limitação da eventual concessão de licença prévia, uma vez que os volumes de produção e ritmo de atividade apresentados no Estudo de Impacto Ambiental são superiores ao que foi requerido pelo empreendedor na ficha de caracterização de atividade”.

Ao Ministério Público, o relatório recomenda apuração sobre a “responsabilidade quanto ao conteúdo da versão inicialmente apresentada do EIA sobre a dispersão de poluentes, nos termos do art. 69-A da Lei nº 9.605/98”.

População e povos tradicionais

Ao Governo no Ceará, o documento pede a suspensão e que não seja renovado o Memorando de Entendimentos assinado entre o Estado do Ceará e o Consórcio Santa Quitéria, em 2020.

“Em face da inviabilidade ambiental do PSQ, declarada pelo próprio empreendedor no EIA em relação à emissão de poluentes e ruídos, bem como em relação aos riscos ao meio ambiente e a saúde da população na área de influência do empreendimento, que ainda não estão suficientemente detalhados”, completa o documento.

Foi solicitado que a Secretaria de Recursos Hídricos do Estado do Ceará analise o Estudo de Impacto Ambiental em relação aos riscos sobre o fornecimento de água e a poluição do recurso natural na região.

Além disso, solicitou que a Secretaria de Saúde do Ceará realize um estudo epidemiológico sobre a mortalidade por neoplasias nos municípios de Santa Quitéria e Itatira, com foco nos microdados das comunidades e assentamentos próximos ao Projeto Santa Quitéria. 

Procurada pela reportagem, a Casa Civil do Ceará não informou se vai acolher as recomendações técnicas elaboradas no relatório. Em nota, destacou apenas que tem como “prioridade a garantia da segurança das pessoas, dos processos e do meio ambiente, em toda a operação prevista no Memorando de Entendimentos assinado com o Consórcio Santa Quitéria”.

Em relação à segurança hídrica, a Casa Civil destacou que o "consumo do projeto representaria menos de 3% do volume do açude Edson Queiroz, não afetando o abastecimento local". 

Os documentos oficiais emitidos pelo Consórcio e respaldados por equipes técnicas, descartam contaminação de águas subterrâneas e superficiais, bem como os níveis de radiação emitidos não serão prejudiciais à saúde de trabalhadores e vizinhos, visto que serão controladas e abaixo do estabelecido pela Comissão Nacional de Energia Nuclear. O projeto prevê controle, constante, pelo Programa de Monitoração Radiológica Ambiental e órgãos de controle, acrescenta a Casa Civil.  (Diário do Nordeste)